CINCO
Uma nova manhã de domingo
raiou sobre Raymond e a igreja de Henrique Maxwell estava outra vez repleta de
fiéis. Antes de começar o culto Eduardo Norman foi o grande alvo da atenção dos
presentes. Ele se dirigiu calmamente ao seu lugar costumeiro, a três bancos
diante do púlpito. A edição do Diário de Notícias daquele domingo contendo a
notícia da descontinuidade das futuras edições dominicais foi redigida numa
linguagem tão elevada que impressionou os leitores. Nunca antes uma sucessão de
fatos novos havia alterado o ritmo da vida pacata de Raymond. Os eventos
relacionados ao Diário de Notícias não foram os únicos. O público também
comentava com excitação as coisas feitas durante a semana por
Alexandre Powers
nas oficinas da estrada de ferro e por Milton Wright em seus estabelecimentos
na avenida. O culto transcorria sob um clima excitante que se fazia sentir em
toda a audiência. Maxwell passeou os olhos por toda a congregação calmamente,
denotando uma força e um propósito incomuns. Suas orações foram muito
inspiradoras, mas o sermão não foi tão fácil de descrever. Como um ministro
seria capaz de pregar ao seu público ao apresentar-se a ele depois de uma
semana de angustiantes perguntas: "Como pregaria Jesus? Quais seriam
provavelmente suas palavras?" Na verdade, ele não pregou como nos domingos
anteriores. Na última terça-feira ele estava ao lado da sepultura do estranho
dizendo as palavras: "Todos procedem do pó, e ao pó tornarão", e
ainda sob a forte impressão, revolvendo sua mente na ânsia de encontrar a
mensagem de Cristo para seus congregados no domingo.
Agora, chegado o domingo, ali
estava seu público para ouvi-lo. O que o Mestre lhes diria? Ele lutara
agonicamente em sua preparação, sabendo-se incapaz de transmitir uma mensagem
que fosse o reflexo da mensagem de Cristo quando estivesse novamente em seu
púlpito. No entanto, ninguém na Primeira Igreja se lembrava de ter ouvido antes
um sermão como aquele. Ele se insurgiu contra o pecado, especialmente a
hipocrisia, e havia uma clara advertência contra a ambição da riqueza, a
ostentação da moda, coisas que a Primeira Igreja nunca ouvira antes desta
forma; e sobretudo, ao mesmo tempo, havia o amor por seu rebanho que renovava
suas forças à medida que o sermão prosseguia. Terminada sua prédica, muitos dos
presentes pareciam dizer em seus corações: "O Espírito inspirou este
sermão." E estavam certos quanto a isso.
Então Raquel Winslow
levantou-se para cantar, desta vez depois do sermão, a pedido de Maxwell. O
cântico de Raquel não provocou o mesmo excitamento desta vez. Que sentimento
mais profundo penetrou nos corações dos presentes, levando-os a um silêncio
reverente e à ternura de pensamentos? Raquel estava linda. Mas agora sua beleza
já não se sobrepunha ao conteúdo da mensagem musical. Havia ainda certamente
poder em seu canto inspirado, mas prevalecia um sentimento geral de humildade e
pureza que os presentes sentiam profundamente, subjugados pelo poder do
Espírito.
Antes do encerramento do
culto Maxwell convidou aqueles que tinham ficado na semana passada a
permaneceram mais uma vez por alguns momentos, dirigindo-se à biblioteca, e
estendeu seu apelo aos que desejassem assumir o compromisso. Encerrados os
cumprimentos aos crentes que deixavam o templo, Maxwell foi imediatamente à
biblioteca. Para sua surpresa, ela estava inteiramente tomada. Desta vez um
expressivo número de jovens tinha vindo, incluindo alguns homens de negócios e
oficiais da igreja.
Como havia feito antes,
Maxwell pediu a todos que orassem com ele. E, como antes, uma sensível
manifestação do Espírito Santo desceu sobre os presentes. Não havia qualquer
dúvida nas mentes de quaisquer deles de que o que se propuseram fazer estava
claramente em sintonia com a vontade divina, e uma bênção repousava sobre eles
de um modo muito especial.
Permaneceram ali algum tempo
para fazer perguntas e trocar impressões e experiências. Havia entre eles um
sentimento fraternal jamais visto antes como membros da igreja. As decisões de
Eduardo Norman tinham sido compreendidas por todos e ele respondeu a várias
perguntas.
"Qual será a provável
conseqüência da interrupção do jornal no domingo?" perguntou Alexandre
Powers, que estava sentado a seu lado.
"Ainda não sei.
Pressinto que vai haver uma queda nas assinaturas e nos anúncios. Eu já previa
isso."
"O senhor tem alguma
dúvida em relação às medidas tomadas? Quero dizer, arrepende-se de alguma
coisa, ou receia que não seja isso que Jesus faria?" perguntou Maxwell.
"Nenhuma dúvida. Mas
gostaria de perguntar, para minha própria satisfação: algum dos presentes aqui
acha que Jesus publicaria um jornal aos domingos?"
Ninguém respondeu
imediatamente. Então Jasper Chase disse: "Parece que pensamos de modo
semelhante a este respeito, mas fiquei várias vezes confuso durante a semana
tentando exatamente saber o que Ele faria. Nem sempre isto é fácil de
compreender."
"Senti a mesma
dificuldade", disse Virgínia Page. Ela estava sentada ao lado de Raquel
Winslow. Todos os que conheciam Virgínia Page estavam curiosos em saber como
ela conseguiria cumprir sua promessa. "Penso que talvez seja
particularmente difícil responder a essa pergunta por causa de meu dinheiro.
Nosso Senhor nunca possuiu qualquer propriedade, e não existe nada em seus
exemplos que me orientem no uso do que tenho. Estou pensando e orando. Vejo
claramente como Ele faria em parte, mas não tudo. O que Ele faria com um milhão
de dólares? Isto é realmente o que desejo saber. Confesso que ainda não tenho
uma solução que me satisfaça."
"Posso dizer a você o
que poderia ser feito com uma parte do que possui", disse Raquel,
voltando-se para Virgínia.
"Isto não me
preocupa", respondeu Virgínia com um leve sorriso. "O que estou
tentando é descobrir um princípio que me possibilite chegar o mais perto possível
da forma como Ele agiria, a fim de que esse princípio influenciasse todo o
ritmo da minha vida, incluindo a riqueza e o uso que devo fazer dela."
"Isto levará
tempo", disse o ministro lentamente. Todos os presentes estavam pensando
profundamente no mesmo sentido. Milton Wright falou alguma coisa de sua
experiência. Ele estava gradualmente desenvolvendo um plano de relações
comerciais com seus empregados, o que estava abrindo para eles e para ele novas
perspectivas. Alguns dos jovens relataram suas tentativas de responder à
pergunta. Havia quase um consenso geral sobre o fato de que a aplicação do
espírito de Cristo e a prática de seu ensino na vida diária era um assunto
sério. Isso requeria um conhecimento sobre Jesus e suas razões, o que a maioria
ainda não possuía.
Quando finalmente encerraram
o encontro após uma oração silenciosa que marcou, mais uma vez, a crescente
manifestação da presença divina, foram para suas casas conversando animada e
ardorosamente sobre suas dificuldades e buscando iluminação uns com os outros.
Raquel Winslow e Virgínia
Page saíram juntas. Eduardo Norman e Milton Wright se envolveram numa conversa
tão interessante que foram além da casa de Norman e tiveram de voltar. Jasper
Chase e o presidente da Sociedade do Esforço Cristão ficaram em pé, num canto
da sala, conversando entusiasticamente. Alexandre Powers e Henrique Maxwell
resolveram ficar mais tempo, depois que todos haviam saído.
"Gostaria que o senhor
fosse amanhã às oficinas para conhecer meus planos e falar aos operários",
disse Powers. "Sinto que pode aproximar-se deles melhor do que qualquer
outra pessoa neste momento."
"Não estou certo disso,
mas estarei lá", replicou Maxwell com uma certa hesitação. Como ele
poderia enfrentar duzentos ou trezentos trabalhadores e entregar-lhes uma
mensagem? Num momento de fraqueza, enquanto fazia a si mesmo esta pergunta,
ficou desapontado por sua indecisão e fez a pergunta correta: "Que faria
Jesus?" Isto punha fim a qualquer dúvida.
Ele foi até lá no dia
seguinte e encontrou Powers em seu escritório. Faltavam poucos minutos para
meio-dia e o gerente disse: "Vamos subir, vou mostrar-lhe o que venho
tentando fazer."
Passaram pela casa das
máquinas, subiram um longo lance de escadas e entraram numa grande sala vazia,
que antigamente tinha sido utilizada pela companhia como armazém.
"Desde que assumi aquele
compromisso há uma semana tenho "pensado em muitas coisas", disse o
gerente, "e entre elas incluí esta: a companhia me autoriza a usar este
espaço, que vou mobiliar com mesas e um balcão para café naquele canto onde
estão os canos de vapor. Minha idéia é dispor de um bom lugar onde os homens
possam almoçar ao meio-dia, oferecendo a eles a oportunidade, duas ou três
vezes por semana, de ouvir uma palestra de quinze minutos sobre algum assunto
que seja de real ajuda para suas vidas.
Maxwell ficou surpreso e
perguntou se os operários viriam para esta finalidade.
"Sim, eles virão. Afinal
de contas, eu os conheço muito bem. Eles estão entre os operários mais
inteligentes do país atualmente. Entretanto, estão afastados completamente de
qualquer influência religiosa. Perguntei 'Que faria Jesus?' e, entre outras
coisas, pareceu-me que Ele começaria a agir de algum modo para acrescentar às
vidas desses homens mais conforto material e espiritual. Este salão e o que ele
representa é uma coisa muito pequena, mas decidi, no primeiro impulso, fazer a
coisa que me pareceu de bom senso, e quero levar adiante esta idéia. Desejo que
o senhor fale aos homens quando eles subirem ao meio-dia. Pedi que eles viessem
ver o lugar e falarei com eles a respeito do que estamos conversando neste
momento."
Maxwell estava com vergonha
de dizer o quanto ele se sentiria desconfortável ao ser solicitado a falar umas
poucas palavras a um grupo de operários. Como poderia ele falar sem anotações,
e especialmente para aquele grupo de homens? Sentia-se totalmente deslocado e
receoso daquela perspectiva. Estava realmente com medo de enfrentar aqueles
operários. Estava um tanto indeciso e inseguro diante dessa perspectiva, que lhe
parecia uma verdadeira provação a de confrontar tal multidão, tão diferente de
suas audiências dominicais que lhe eram familiares e bem comportadas.
Havia no local uma dúzia de
mesas e bancos toscos, e quando soou a sirena os homens subiram as escadas, vindos
nas oficinas do térreo, sentando-se nas mesas e começando a comer seu almoço.
Deviam estar presentes uns trezentos deles. Tinham lido os avisos do gerente
espalhados em vários lugares e apareceram principalmente por curiosidade.
Eles ficaram bem impressionados.
O salão era grande e arejado, livre de fumaça e pó, e bem aquecido pela
tubulação de vapor. Por volta de vinte minutos para uma hora o sr. Powers disse
aos homens o que tinha em mente. Falou com simplicidade, como quem conhece bem
o tipo da audiência, e em seguida apresentou o Rev. Henrique Maxwell, da
Primeira Igreja, seu pastor, que aceitara o convite para falar uns poucos
minutos.
Maxwell nunca iria esquecer
os sentimentos que o dominaram quando enfrentou, pela primeira vez, um
auditório de operários de caras sujas. Como muitos outros ministros, ele jamais
havia falado a uma assembléia que não fosse composta de pessoas de sua própria
classe, ou seja, pessoas cuja educação, aparência e maneiras lhe eram
familiares. Este era para ele um mundo novo, ao qual jamais falaria antes de
sua nova regra de conduta, a qual tornava possível e até natural esta mensagem
e seus efeitos. Falou sobre a satisfação de viver, suas causas e suas fontes.
Neste primeiro encontro Maxwell teve o bom senso de não considerar os operários
uma classe diferente da sua própria. Ele não usou a palavra operário e não
disse uma única palavra que sugerisse qualquer diferença entre as vidas deles e
a sua própria.
Os homens ficaram
satisfeitos. Um bom número dentre eles apertou-lhe a mão antes de descer para o
trabalho. Ao chegar a casa Maxwell contou tudo à esposa e disse-lhe que jamais
em toda sua vida tinha experimentado o prazer de apertar a mão de um
trabalhador braçal. Esse dia ficou marcado como um dos mais importantes em sua experiência
cristã, mais importante do que ele podia imaginar. Era o começo de um laço de
fraternidade entre ele e o mundo operário. Era a primeira prancha de uma ponte
que se construía sobre o vazio existente até então entre a igreja e o trabalho
em Raymond.
Alexandre Powers voltou para
sua mesa naquela tarde muito contente com seu plano, vendo nele uma excelente
oportunidade de ajudar aquela gente. Soube onde conseguir alguma boas mesas de
um restaurante abandonado em uma das estações da estrada, e viu como a
providência do café poderia ser uma grande atração. Os homens haviam
correspondido e se comportado de forma ainda melhor do que se previa e no todo
os benefícios para eles não poderiam ser mais úteis e oportunos.
Reassumiu sua rotina de
trabalho com grande satisfação. Afinal de contas, ele fez o que Jesus teria
feito, disse a si mesmo.
Ao redor de quatro horas,
Powers abriu um dos grandes envelopes da companhia, que imaginava contivessem
ordens de compra de materiais para o almoxarifado. Passou os olhos na primeira
página rapidamente, como era seu costume, antes de perceber que estava diante
de um documento que não dizia respeito à sua área e, sim, ao gerente do
departamento de fretes.
Folheou o documento
mecanicamente, sem a intenção de se inteirar do que não era de sua alçada,
quando notou uma frase que provava, com toda evidência, que a companhia estava
envolvida numa violação sistemática das leis comerciais do país. Tratava-se de
uma transgressão tão clara como se alguém entrasse numa casa para roubar os
moradores. E não eram apenas as leis do país que estavam sendo infringidas, mas
os próprios estatutos da organização estavam sendo violados intencionalmente.
Não havia dúvida de que Powers tinha em mãos provas suficientes para acusar a
companhia de infração voluntária e consciente dos seus próprios estatutos e das
leis do estado.
Atirou tudo aquilo sobre a
mesa como se fosse veneno, e instantaneamente a pergunta "Que faria
Jesus?" atravessou sua mente. Tentou fugir desta pergunta. Procurou
raciocinar dizendo a si mesmo que aquele assunto não era com ele. Tinha certeza
de que todos os encarregados dos setores da companhia supunham que a alta
direção da ferrovia agia sempre de acordo com a lei. Em sua posição não
dispunha de meios de confirmar tal observância nem lhe fora atribuída
responsabilidade para tanto. Nada disso dizia respeito a ele. Mas os documentos
estavam diante de seus olhos mostrando a impropriedade do procedimento. Por
falha de endereçamento, eles vieram parar em sua mesa. Que tinha ele a ver com
isso? Se ele visse um homem penetrando na casa de seu vizinho para roubar, não
era seu dever avisar a polícia? Este caso da companhia de estrada de ferro era
por acaso diferente? Estava ela sob diferentes leis de procedimento, de modo
que se pudesse roubar o povo e desafiar as leis, permanecendo impune por ser
uma grande organização? Que faria Jesus? Veio-lhe então à lembrança sua
família. Certamente, se ele denunciasse a irregularidade, corria o risco de
perder sua posição. Sua esposa e sua filha sempre desfrutaram uma vida
confortável e tinham um lugar destacado na sociedade. Se testemunhasse contra
essa fraude, teria de comparecer diante de um tribunal, seus motivos como
acusador poderiam ser mal interpretados e acabariam complicando sua vida e criando
para ele uma situação insustentável dentro da companhia. Estava bem claro que o
assunto dos documentos não o afetava. Ele poderia simplesmente remetê-los ao
departamento de fretes e ficaria livre e tranqüilo. Que continuassem as
irregularidades! Que a lei fosse desrespeitada! Que tinha ele com isso? Poderia
continuar fazendo sua parte para melhorar as condições do seu setor. Que mais
poderia ser feito numa empresa ferroviária no meio de tanta coisa errada que
torna praticamente impossível a uma pessoa viver de acordo com o modelo
cristão? Mas, que faria Jesus diante desses fatos? Esta era a questão que
estava diante de Alexandre Powers quando o dia já começava a escurecer.
As luzes da seção foram
acesas. O ruído e vibração da grande máquina e os sons metálicos das plainas na
grande oficina continuaram até as seis horas. Então a sirena soou, as máquinas
foram parando, os homens largaram suas ferramentas e saíram correndo em direção
ao vestiário.
Powers ouviu o costumeiro
clic, clic, clic dos relógios de ponto, enquanto os homens em fila passavam
pela portaria na saída do vestiário. Informou seus funcionários: "Não vou
sair agora. Tenho um trabalho extra a terminar." Esperou que o último
homem saísse do prédio. O engenheiro e seus assistentes trabalharam meia hora
mais, porém saíram por outra porta.
Às sete horas, se alguém
olhasse para o escritório do gerente, teria visto uma cena comovente. Ele
estava ajoelhado, a fronte entre as mãos, inclinando a cabeça sobre os papéis
de sua mesa.
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